Blá Blá Filmes – PRAIA DO FUTURO (por Antonio Thieme)


Olá de volta com o 
Blá Blá Filmes, que passou por um período quietinho, longe de você e desta coluna. Sim, pois nem só de verborragia e blá blá blá vive o ser humano. Há também silêncio… Graças aos deuses! Pois bem, para marcar este retorno às palavras de cinema, nada melhor do que falarmos sobre o mais novo filme de Karim Aïnouz, Praia do Futuro. Um filme de silêncios... faltas... vazios... E também de um grande autor de cinema brasileiro.

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Para o 
Blá Blá, Aïnouz está ali do lado de nossas outras grandes paixões – de Lars Von Trier e Tarkovsky  e reconhecemos o luxo de podermos ter um autor deste calibre aqui no Brasil, que consegue ultrapassar barreiras geográficas com a qualidade de seus filmes e ainda por cima seguir firme e fiel ao seu DNA/sotaque/cerne nordestino; tornando seus filmes pungentes a plateias diversas e se firmando com o talento autoral que todo diretor de cinema sonha não apenas em ter, mas também em poder exercer: o de ser um grande contador de estórias. Realmente, um orgulho. 

 

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E a estória que Karim vem nos contar desta vez é a de Donato, o bombeiro cearense que após falhar no salvamento de um dos dois motociclistas alemães que se banhavam na Praia do Futuro, é incumbido de informar ao turista sobrevivente a morte de seu companheiro. A partir daí se forma uma tríade de afetos masculinos – entre o salva-vidas, o sobrevivente e o irmão do primeiro – em que a busca de uma forma de amor passa pela abdicação da outra. 

 

 

E é em seu quinto longa-metragem  sua obra mais madura como autor – que ficam evidentes o refinamento gráfico de seus filmes (sempre esteticamente belos), assim como a repetição e apropriação de elementos de sua iconografia pessoal como diretor e também a singularidade cada vez mais íntima de suas estórias.  

 

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Da beleza estética de seus filmes:
 

Se você assistiu a O Céu de Sueli (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), deve ter impressas em sua memória imagens de apelo visual muito forte, como as cenas de azul profundo do primeiro e o apuro plástico da montagem do segundo. Há sempre um banquete aos olhos nos filmes de Karim. E dessa vez não é diferente. A concepção imagética de Praia do Futuro passa pelo contraste do uso da luz entre duas capitais completamente distintas, não só na iluminação natural, mas também em suas culturas e identidades emocionais: Fortaleza e Berlim. A luz do verão nordestino com exposição ao sol a pino vai em direção oposta à luz (ou falta dela) do inverno alemão. A herança da família nuclear brasileira se contrapõe ao culto europeu à individualidade.  A intensidade das emoções latinas se atrita com o pragmatismo do caráter germânico. É através deste contraste visual que estes temas e personagens encontram cenário para (des)encontrarem-se. 

 

montagem


Do uso de elementos iconográficos
 próprios na filmografia do diretor:
 

 

A estrada, a moto e o destino. O uso, o domínio e apropriação do corpo e da sexualidade. A viagem interior e a fuga geográfica. A comunicação entre a feminilidade (alma) e o masculino (concreto); e a escassez de diálogos entre os personagens que dá espaço à exploração de suas paisagens internas. Lugares, cidades e luz. Vazios, faltas e melancolia. Busca.  

Cada vez mais Karim Aïnouz se apropria de signos e elementos próprios para contar suas estórias. E seu uso recorrente se torna cada vez mais preciso. Assim como Lars Von Trier que volta a temas próprios e se autorreferencia, como na citação imagética de Anticristo no meio do segundo volume de Ninfomaníaca, Aïnouz volta ao tema da estrada como fuga emocional, presentes nos já mencionados O Céu de Sueli e Viajo Porque Preciso  Ao reutilizar estes símbolos refaz um mito, uma utopia universal, de que é possível recomeçar do zero, limpar a ficha em uma outra localidade, uma outra vida. E também reafirma a ideia embutida na cultura local nordestina, de que para “se fazer na vida” é preciso prosperar em outro lugar que não aquele em que se nasceu. Há que se ir em busca. De si mesmo. Ou simplesmente “sair daqui”, de onde estou, deste momento. São todos road-movies sem GPS emocional, onde o mapa se desenha enquanto se caminha. E o caminho é o que se torna importante e não o destino. Já em Viajo Porque Preciso… Karim buscava a precisão geográfica deste mapa através das imagens, assim como fez Andrei Tarkovski ao longo de toda a sua obra, mas mais especificamente em filmes como O Espelho (1975) e Stalker (1979): a busca interna se dando através da exploração de espaços físicos. Assim como nas obras de grandes autores, sejam eles escritores, compositores ou artistas plásticos; os elementos da iconografia do diretor vão se sobressaltando, assim como sua temática. 

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Da natureza íntima de suas estórias: 

Travestis, prostitutas, corações partidos… Homossexuais. Estes são os heróis de  Karim Aïnouz. E neles toda a imensidão da natureza humana. Tão singular e ao mesmo tempo tão abrangente. O que faz com que queiramos acompanhar estes personagens? A ideia simples de que todos eles carregam um pedaço de nós mesmos dentro deles. E é dessa forma que o diretor confecciona seus protagonistas: a partir de perguntas, não de respostas. Não há certeza para nenhum deles. Só existe a vida e o que é possível se fazer com ela, hoje. Como diria Tom Jobim, É pau, é pedra, é o fim do caminho, é um resto de toco, é um pouco sozinho, é um caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é o laço, é o anzol, é o pé, é o chão, é a marcha estradeira (…) é o fundo do poço, é o fim do caminho, no rosto o desgosto, é um pouco sozinho.”  Sim, a solidão está presente. Mas a busca sempre continua. 

 

retrospectiva

 

Sobre o elenco e polêmicas: 

elenco

 

Para o final, um atenção a parte sobre a escolha (eu diria curadoria), de um elenco tão precioso. Wagner Moura se despe de tudo e se firma como um ator de cinema daqueles que trocam de pele na nossa frente, com um arco de interpretação comparável quem sabe ao de Sean Penn, que transita entre filmes de personagens rudes e extremamente sensíveis. Da truculência do Capitão Nascimento vamos à fragilidade extrema de Donato. A excelência do uso da linguagem corporal do ator é algo impressionante, nos gestos contidos, nos ombros encolhidos, no olhar perdido. Mais um orgulho para nosso cinema.  Jesuita Barbosa é a grande descoberta do cinema nacional e emplaca mais uma performance talentosa em Praia do Futuro, com poucos meses de diferença do lançamento do poético e histórico Tatuagem (2013) de Hilton Lacerda. Fechando o trio de heróis do amor masculino, sejam eles amantes ou irmãos, está o alemão Clemens Schick, num personagem irritantemente… alemão. Quando escrevo isso é com humor, obviamente. Se  faço a escolha da palavra irritante é pela dureza emocional e frieza típicas do personagem e não do ator ou de um povo.  

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Finalmente vou brevemente endereçar questões referentes à polêmica em torno das cenas de sexo gay do filme e a documentada retirada em bando de um punhado de medíocres preconceituosos chocados com a “surpresa” das cenas de amor entre homens. Bem… ZzZzzz… Que preguiça, mas vamos lá. Se você se dispõe a ver um filme de arte deve estar ciente que questões de natureza prosaica como a exposição ou não por veículos de massa da sexualidade humana não encontram muito espaço pra quem realmente acompanha arte em geral. Então, se #essapraianãoéasua, fique em casa vendo televisão e não incomode.  De fato, em tempos de repressão da expressão individual, da onda de conservadorismo que assola nosso país e a total ignorância que nos circunda; o filme acabou por assumir um caráter militante ao qual não havia se proposto. Que assim seja então. Mas caso você esteja procurando mais do que isso, saiba que em Praia do Futuro você irá encontrar não apenas uma peça de cinema de arte de um diretor maduro e experiente em seu ofício; mas também uma reflexão sobre a alma humana e a busca interna através do vazio inerente a cada um de nós. 

 

E bom divertimento! 

fim

 

  

Fique de olho também: 

 

  • Na fonte brasileira anos 80 do tipo “cenas dos próximos capítulos” usada nos créditos do filme. 
  • Na estética “motoqueira” da apresentação título na tela. 
  • No uso das roupas de MotoCross para criar a ideia do uniforme dos heróis. 
  • Na locação do hotel alemão com o maior aquário cilíndrico do mundo. 
  • Em como o título do terceiro capítulo do filme “Um fantasma que fala alemão” se aplica tanto ao personagem de Wagner Moura quanto ao de Jesuíta Barbosa e também ao de Clemens Schick.  
  • Em como as elipses dos cortes secos na narrativa do filme contam muito mais fatos sobre a estória do que qualquer frase nos diálogos entre os personagens. 
  • Na trilha sonora, com David Bowie cantando “Heroes” em alemão. 

     

 

 

 

MIMOS DO TIPO DIVINO: 

 

Está meio atrasado na filmografia de Karim Aïnouz? Que tal aproveitar a ida ao cinema para conferir Praia do Futuro  para depois conferir seus filmes anteriores. Blá Blá Filmes libera links pra você das outras obras do autor e outro para baixar Helden – de David Bowie. 

E bom fim de semana de cinema (e música). 

 

Madame Satã 

 

O Céu de Suely 

 

Alice (Série de TV para HBO Brasil) 

 

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo 

 

O Abismo Prateado 

(em breve) 

 

Helden – David Bowie